segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Corpo e pecado... Delas


Por Márcia Roos
O desconhecido, ou o não compreendido, é, ou pelo menos foi por muito tempo, gerador de medo, de apreensão e de repulsa, como também de curiosidade e de tentativas de explicações concernentes ao nível de conhecimento mágico ou científico alcançado em determinada época. Assim, o corpo feminino viu-se, durante a história exposto aos mais diversos tratamentos derivados do conhecimento (masculino) que se tinha deste corpo e das conseqüentes interpretações feitas com base nesse conhecimento.

O termo misoginia – designa o sentimento masculino, ou pelo menos, a representação do ponto de vista de uma sociedade masculina, diante da mulher – relaciona-se aos tratamentos documentados sobre mulher e deriva do grego miso – que odeia – e gunê – mulher, isto é, aquele que odeia, tem aversão à mulher, ao feminino.

As raízes desse medo (ou aversão) são uma invenção que nos remete a períodos que antecedem ao cristianismo. Judeus e gregos já a temiam, tanto que para estes foi ela que cometeu o primeiro pecado, ou abrindo a urna de todos os males ou comendo do fruto proibido. “Pandora grega ou Eva judaica” [1]: uma mulher, como a responsável perfeita pela desgraça humana diante de um mundo masculino, androcêntrico.

A mulher com seu corpo, com seus mistérios, sua ligação com a geração da vida, sua relação com o ciclo humano, fizeram dos homens seres temerosos diante do que eles não compreendiam e não tinham acesso. As mulheres sempre estiveram presentes em todos os acontecimentos vinculados ao ciclo biológico, cabia a elas o primeiro e o último contato com os corpos, os cuidados com recém-nascidos, com os doentes e os mortos[2].

Assim, era preciso “neutralizar a magia feminina” [3], pois era ela que tinha o poder sobre a vida e conivência com a natureza. Dessa forma, sujeitar a mulher seria dominar o caráter perigoso que se atribui à sua impureza fundamental e à sua força misteriosa[4].

“Feminino” e “mulher”, mais do que simples designações para um gênero, são conceitos em que cabem todo um discurso masculino misógino, ou no mínimo, antifeminino. “Feminino” deriva de Femina procedente de Fe e minus[5], pois ela tem e conserva menos fé. E o termo “mulher” teve sua origem derivando de mulier que remete à mollitia, relacionado à fraqueza, à flexibilidade, à simulação[6] próprias da essência e conduta femininas, nesse discurso.

Foi tida como mal magnífico, venenosa, enganadora, teve seu corpo cercado de predicados pejorativos[7] diante de sua personalidade e fisiologia. A impureza, o perigo advindo dos corpos produzia repulsa. Mas ao mesmo tempo e paradoxalmente era admirada, exercia atração e fascínio. Portanto, o que prevaleceu foi uma história escrita e preservada por homens, ou seja, uma narração do que é da mulher. Assim, ela é um ser negativo e poluidor em seus atos e em seu corpo.

Foi sobre o feminino que recaiu o horror pelo corpo e o desprezo pelo sexo. O corpo da mulher foi tratado como lugar da “eleição do diabo”, sendo esse corpo um obstáculo ao exercício da razão com que o homem via-se obrigado a se unir pelo casamento; apesar de ele mesmo pensar que era quase “impossível sair-se puro do abraço conjugal” [8]. A mulher era vista com um mal necessário para a produção de descendentes saudáveis, e apenas para isso.

Tal situação, da mulher como mera procriadora, aparece em muitas sociedades, em que ela contraía núpcias somente para ser um receptáculo à semente masculina. Saía da casa do pai, seu primeiro dono, e ia para casa de seu marido para oferecer-lhe descendentes, e o melhor para ela é que fossem saudáveis. Seus filhos – seus únicos frutos bons – precisavam ser saudáveis ou seriam sacrificados, em uma sociedade, ou noutra, as mulheres seriam estigmatizadas como pecadoras.

Esse corpo estereotipado é lugar de ódio e desprezo no universo escatológico cristão. É sobre ele que toda a ira divina recai. O mito do pecado original, o pecado de orgulho intelectual, o de desafio intelectual ao Deus-homem, são transformados pelo cristianismo em pecado sexual[9].

Assim, o mítico pecado de Adão e Eva significou também um pecado de orgulho intelectual. A mulher, dotada de intelecto dado pelo Deus bíblico, depois dos esclarecimentos oferecidos pela serpente, chegou à conclusão de que seria mais vantajoso comer do fruto do que seguir as ordens divinas que limitavam sua visão. O comer do fruto abriria seus olhos e teria assim conhecimento do que é bom e do que é mau.

Dessa forma, o ato de comer o fruto proibido configurou-se em desafio intelectual ao Deus-homem que foi transformado em pecado sexual mais tarde. O resultado imediato da desobediência do casal recém-criado foi a abertura de seus olhos, seguida da vergonha da nudez: “abriram-se então os olhos de ambos e começaram a perceber que estavam nus” [10].

O castigo divino foi executado em seus corpos. As dores de parto na mulher, o desejo ardente da mulher pelo homem, a dominação dele e o fato de que o homem somente comeria pão a partir do trabalho árduo exercido pelo seu corpo[11].

Esse arquétipo cristão é uma das bases em que se assenta o pensamento ocidental sobre os corpos. E é sobre o corpo feminino que recaem as pesadas representações que ancoram a mulher em lugares e funções específicas. Construções de natureza e essências femininas deixaram-na a parte do público, das decisões sobre a sociedade e sobre si.

A mulher ideal é representada como silenciosa, maternal, dotada de um corpo frágil e de uma languidez intelectual que a faz apta para cuidar dos filhos, da casa, dos doentes. Um corpo docilizado pelas lides domésticas. Corpo domesticado, enclausurado no universo privado. Sorriso discreto, boca calada, cabelos cobertos como signo de sua inferioridade e eterna submissão.

Isto é, “seja bela e cale a boca” como no conselho recebido pelas moças casadoiras nos séculos XVIII e XIX[12]. O que torna realmente interessante tudo isso é que tal representação agradou tanto os sentidos masculinos que ainda no século XX eram notados seus reflexos. Os dedicados colunistas pasquinianos demonstram que fizeram a lição de casa quando o assunto é mulher e o que ela representa. Quando Mônica Hisrt, a novata jornalista, recém chegada ao Pasquim, é apresentada aos leitores, a trupe do Pasquim mostra seu aprendizado, e diz que a moça “é muito bonitinha de maneira que não precisava saber escrever”[13].

Essa pérola da misoginia pasquiniana é um bom exemplo de como certas lições são bem aprendidas. Mas, ao contrário dos desejos de enclausuramento, também aprendidos com as gerações passadas, apesar de não precisarem saber escrever, elas escreveram, assim como nem todas mocinhas casadoiras se calaram. É a mulher e seu corpo em outros caminhos.

Michele Perrot[14] defende a idéia de que o corpo está no centro de toda relação de poder e, de maneira imediata e específica, o corpo das mulheres é o próprio centro. Diante disso, uma perpétua suspeita instala-se sobre sua aparência, sua beleza, suas formas, suas roupas, seus gestos, sua maneira de andar, de olhar, de falar e de rir. Nesse discurso, toda mulher em liberdade é um perigo e, ao mesmo tempo, está em perigo; se algo de mau lhe acontece, ela está recebendo apenas aquilo que merece.

Afinal, quantas mulheres foram consideradas culpadas pelas violências que sofreram. Se ela foi agredida pelo marido, algo fez para merecer; se foi violentada sexualmente, deve ter provocado ou ter andado por lugares em que chamou a atenção e se expôs em demasia.
Nesse sentido, o corpo feminino necessita de proteção, pela sua fragilidade e também pelos perigos que sua sexualidade representa. Então a mulher fechada em casa foi, por muito tempo, o local mais natural para ela, aliás, a casa representa seu habitat natural, o locus de sua atuação e de sua função verdadeira: a procriação.

Sobressai-se nas representações femininas fortes descrições naturalistas e essencialistas, que transformam discursos e práticas sociais em verdades quase irrefutáveis. Mas, neste como em qualquer contexto histórico, não se pode perder de vista o que é uma representação.
Segundo Roger Chartier as representações do mundo social são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as forjam sendo que as percepções do social não são neutras, pois elas produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezadas, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.
[15]

Neste sentido, conforme Ana Maria Colling[16], as representações da mulher impuseram ao feminino uma natureza, uma essência, uma feminilidade inata à mulher. Ou seja, de tanto historicizar a mulher imputando-lhe características próprias, únicas e intransferíveis, vê-se uma natureza feminina forjada. Em concordância, Céli Pinto, demonstra isso ao afirmar que “inventamos histórias, inventamos sujeitos, inventamos o homem, inventamos até uma natureza necessária, para podermos negar nossas invenções”[17]

Ao se optar pela idéia de natureza feminina, desconsidera-se o processo de construção de um discurso que delimita o que uma mulher pode fazer, o que deve fazer e onde deve estar. Ou como elucida Colling, “no momento em que se designa uma ‘natureza feminina’, retira-se o caráter de construção do discurso que imputa à mulher funções, papéis, e comportamentos e, ao mesmo tempo, a transforma em mera espectadora de uma situação que parece imutável” [18]. E nessa aparente imutabilidade residem as permanências, que são reflexos de antigas representações que mantém suas influências ao longo dos tempos.

[1] DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 314.
[2] QUINTANEIRO, Tania. Retratos de Mulher: O cotidiano feminino no Brasil sob o olhar de viageiros do século XIX. Petrópolis: Ed. Vozes, 1995, p. 152.
[3] DELUMEAU. Loc. cit., p. 314.
[4] Idem.
[5] NOGUEIRA, Carlos Alberto Figueiredo. Bruxaria e História. As Práticas Mágicas no Ocidente Cristão. São Paulo: Ática, 1991, p.106. DELUMEAU. Op. cit., p. 327. Cf. KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum: O Martelo das Feiticeiras. RJ: Ed. Rosa dos Tempos, 2001, p.117.
[6] MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Média. SP: Ed. Contexto, 1999. p. 21. Também diz o Malleus que “o vocábulo mulher é usado para indicar a lascívia da carne”. Op. cit., p. 125.
[7] Entre eles podemos destacar definições para as mulheres como: “decaídas”; “animal imperfeito”, mais rápida em vacilar”, “mentirosa por natureza”, “bonita de se olhar”, mas “contamina pelo contato”, e é “mortal para se manter”. BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard. A Inquisição. São Paulo: IMAGO, 2001, p. 128.
[8] NOGUEIRA. Op. cit., p. 104.
[9] LE GOFF. Op. cit., 1983, p. 59.
[10] Gênesis 3:6-7.
[11] Gênesis 3:16, 17.
[12] PERROT, Michele. As mulheres ou os Silêncios na História, SP: EDUSC, 1998, p. 10.
[13] O Pasquim, n°23, 11 a 17/12/1969, p.24.
[14] PERROT. Op. cit., p. 447.
[15] CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1990, p. 17
[16] COLLING, Ana Maria. A Construção da Cidadania na Mulher Brasileira – Igualdade e Diferença. Tese de doutorado, 2000, p. 178
[17] In COLLING, 2000, p. 178.
[18] Idem.
Imagem: "Crucified Woman" do cartunista nova-iorquino Erik Drooker

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